A transmissão de quotas por morte em Angola: breves notas

por Ireneu Matamba em 13 de Feb, 2024 Artigo
1503 leituras
A transmissão de quotas por morte em Angola: breves notas
  1. Notas iniciais[1]

Em Angola o tipo de sociedade comercial mais frequente é o de sociedades por quotas, tanto pluripessoais, como unipessoais.

Ao entrar para uma sociedade o sócio realiza uma contribuição em dinheiro ou em espécie (um bem avaliado em dinheiro e susceptível de penhora) e recebe em troca uma quota. A titulação da quota permite-lhe beneficiar de certos direitos sociais, com destaque para o direto de comparticipar nos lucros da sociedade (artigo 23.⁰, n.º 1, al. a. da Lei das Sociedades Comerciais). Aliás, o objectivo último de um sócio é o de quinhoar nos lucros.

Todavia, por facto natural (morte) ou por facto subjectivo (vontade do seu titular), a quota pode ser transmitida a outra pessoa.

Embora também haja o que se lhe diga quanto à transmissão por acto entre vivos, a presente análise incidirá, unicamente,sobre a transmissão de quotas por morte, mais concretamente no caso de no contrato de sociedade não ter sido afastada a transmissão aos sucessores.

A motivação para a mesma prende-se com o facto de estarem a surgir algumas escrituras públicas de transmissão de quotas aos herdeiros, outorgadas pelos sócios supérstites e pelo(s) herdeiro(s), muitas vezes na sequência de exigência do registo comercial – de pelo menos existir alguma deliberação da sociedade para transmitir ou confirmar a transmissão.

Assim, pretende-se descortinar quais os procedimentos a observar para a transmissão da quota por morte?

 

  1. Liberdade contratual

Os sócios podem, aquando da constituição da sociedade ou posteriormente, através de alteração ao pacto social, regular a matéria da transmissão da quota por morte como lhes aprouver, salvas algumas excepções decorrentes de normas imperativas.

Com efeito, de acordo com o disposto no n.º 1 do artigo 248.º da Lei das Sociedades Comerciais, os sócios podem estabelecer uma das seguintes hipóteses:

        a) transmissão aos sucessores, o que pode ser feita de forma expressa (nos estatutos) ou de forma tácita, isto é, no silêncio, já que o afastamento do regime geral das sucessões pressupõe manifestação expressa;

        b) condicionar a transmissão a certos requisitos, quer a favor da sociedade (artigo 248.º da Lei das Sociedades Comerciais) quer a favor dos próprios herdeiros (artigo 249.º da Lei das Sociedades Comerciais);

        c) estabelecer que a quota não se transmite aos sucessores.

Assim, em caso de morte, a primeira atitude deve ser a de se consultar o contrato de sociedade, para perceber qual foi o regime estabelecido pelos sócios, no âmbito da sua liberdade contratual. E essa afirmação vale para todos: herdeiros, sociedade, notários, conservadores do registo comercial.

Lembra-se que a hipótese da qual se parte para a presente análise é a primeira (alínea a.).

 

  1. Casos em que a quota se transmite aos herdeiros

Da leitura que se faz do artigo 248.º da Lei das Sociedades Comerciais, as quotas são transmitidas aos herdeiros em 2 situações:

        a) Quando tal decorra de forma expressa ou tácita dos estatutos, ou seja, quando os mesmos (estatutos) afirmam que ocorrendo a morte a quota é transmitida aos herdeiros ou no caso de os estatutos nada dizerem a respeito, o que, como já mencionado, pressupõe a aplicação do regime geral das sucessões (transmissão da herança ou se se quiser, dos bens que integram a herança, aos herdeiros ou legatários) – é o que decorre do número 1 do artigo 248.º da Lei das Sociedades Comerciais;

        b) A segunda decorrerá do facto de, cabendo a sociedade decidir sobre o destino da quota, isto é, se a amortiza, se a adquire ou se a faz adquirir por um terceiro, a sociedade nada fazer no prazo de 90 dias, depois da morte, o que implicará a sua aquisição pelos herdeiros, salvo se os mesmos não quiserem – conferir o n.º 2 do artigo 248.º da Lei das Sociedades Comerciais.

 

  1. Procedimento para a transmissão: necessidade de deliberação da sociedade e de escritura pública?

Sabendo em que casos a quota se transmite aos herdeiros, resta saber o que fazer para que se concretize, formalmente, a transmissão.

A transmissão da quota aos herdeiros é automática, o que significa que opera com a morte, não sendo necessária a mediação da sociedade. Com efeito, a sociedade não tem de tomar qualquer deliberação à respeito, pois a mesma (deliberação) seria inútil, por não ser capaz de produzir efeito algum no acto que supostamente se pretende praticar, na medida em que a causa da transmissão é a morte e não um acto inter vivos.

Apenas haveria lugar à deliberação da sociedade em caso de ser necessário, de acordo com os estatutos, a amortização da quota, a sua aquisição pela própria sociedade ou fazê-la adquirir por um terceiro, nos termos do já citado artigo 248.º da Lei das Sociedades Comerciai[2]

Destarte, seria unicamente necessário comunicar ao registo comercial quem é ou quem são os novos titulares ou contitulares da quota, conforme tenha havido já partilha da herança ou não, respectivamente. A comunicação à sociedade, apenas para tomar conhecimento, também é recomendável. Essa comunicação pode ser feita antes ou depois de o registo da transmissão por morte estar concluído, não cabendo à sociedade a prática de acto algum, por se estar fora da hipótese do n.º 2 do artigo 248.º da Lei das Sociedades Comerciais.

A transmissão da quota é inscrita no registo comercial a favor de herdeiro(s) certo(s) ou de todos os herdeiros certos e incertos do de cujus, conforme tenha havido já partilha da herança, ou não, respectivamente.

Para tal, o(s) herdeiro(s) ou o representante dos herdeiros fazem um requerimento dirigido ao conservador do registo comercial competente, devendo juntar prova da morte (certidão de óbito) e da qualidade de herdeiros dos requerentes (habilitação de herdeiros e/ou partilha extrajudicial ou judicial).

Não sendo necessária deliberação da sociedade, tão-pouco é preciso reduzir-se a escritura pública a transmissão por morte.

A escritura pública é unicamente a formalização de um negócio jurídico inter vivos. Pergunta-se, então:

        a) qual seria o negócio inter vivos que seria reduzido à escritura?

        b) quem seriam os sujeitos activos e passivos desse negócio?

Quanto à primeira pergunta, não há aqui qualquer negócio inter vivos, pois a causa da transmissão é a morte. O artigo 247.º é bastante claro ao distinguir às duas formas de transmissão.

No tangente à segunda pergunta, que já nem deveria ser respondida, destaca-se, apenas, que se a quota é do de cujus, posição não defensável, seria absurdo pensar-se no falecido a outorgar a mesma; caso se entenda que quem transmite são os herdeiros, seria, igualmente, absurda a ideia, pois os mesmos (herdeiros) não podem transmitir algo que ainda não adquiriram e a eles próprios. E também não se pode pensar na sociedade como transmitente, pois na hipótese em análise está excluída a aquisição da quota pela sociedade.

Portanto, não há necessidade de deliberação da sociedade, muito menos de escritura pública de transmissão por morte, aos herdeiros.

 

  1. Notas finais

A transmissão de quotas por morte tem um regime claro, constante dos artigos 248.º e seguintes da Lei das Sociedades Comerciais e deve ser completado com o regime geral das sucessões que, aliás, em regra vigora, salvo quando de forma expressa os sócios estipularem o contrário no contrato de sociedade.

Não tendo sido afastada a transmissão aos herdeiros, a quota se transmite a estes, sem necessidade de deliberação da sociedade, nem de formalização notarial, através de escritura pública, por não se tratar de um acto inter vivos.

 

E a si, caro leitor, o que lhe parece? Deixe a sua opinião nos comentários abaixo, depois de fazer login.

Muito obrigado pela leitura.

Mestre Silvino de Castro, muito obrigadio pela revisãio do texto.

 

 

[1] Resumo de um estudo que será publicado na íntegra brevemente.

[2] Cf., em sentido idêntico, além de outros, Vale, Sofia Maia, As empresas no direito angolano: lições de direito comercial, 2015, página 582; Abreu, Jorge Manuel Coutinho de, Curso de Direito Comercial, vol. II, das Sociedades, 5ª edição, Almedina, 2015, página 323 e 325; Marques, J. P. Remédio, comentário ao artigo 225.º do Código das Sociedades Comerciais português, in Abreu, Jorge Manuel Coutinho de, Código das Sociedades Comerciais em Comentário, volume III (artigos 175.º a 245.º), Almedina, Outubro de 2011, páginas 424 a 425.

Ireneu Matamba

Ireneu Matamba

Mestre em direito pela Universidade do Minho; Aluno do Doutoramento em Direito Civil na UBA; Pós-graduado em direito das sociedades comerciais; Pós-graduado em direito do trabalho e segurança social; Co-fundador do portal Matamba - Direito & Tecnologia; Ex Director Geral do Guiché Único da Empresa; Ex Director Nacional de Identificação, Registos e Notariado; Docente universitário há 16 anos; Consultor jurídico (direito comercial, direito das sociedades comerciais, direito da família e sucessões e direito dos registos e notariado).

Áreas
Direito Societário

Palavras-chave
transmissão quota morte escritura pública deliberação social
Partilhe nas redes sociais

Comentários (0)

Enviar Comentário