Abertura de contas bancárias de sociedades comerciais: análise aos procedimentos adoptados por alguns bancos comerciais

por Ireneu Matamba em 23 de Aug, 2023 Artigo
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Abertura de contas bancárias de sociedades comerciais: análise aos procedimentos adoptados por alguns bancos comerciais
  1. Colocação do problema e razão de ser do tema

Quais as informações e documentos que os bancos devem exigir, para efeitos de abertura de conta bancária de sociedades comerciais?

O problema acima colocado é um dos vários que tenho recebido de advogados, consultores, empresários e estudantes, provavelmente por ser docente de direito comercial (lato sensu) da Faculdade de Direito da Universidade Agostinho Neto (FDUAN) e por ter exercido a função de Director Geral do Guiché Único da Empresa.

Em última análise, e como frisado pelos formados da segunda turma da segunda edição do curso de auditoria jurídica empresarial, promovido pelo Centro de Estudos e Formação da Ordem dos Advogados de Angola (CEF-OAA), a questão acima colocada prende-se com a efectividade (prática) das muitas e boas reformas feitas pelo Estado angolano, visando a melhoria do ambiente de negócios, sobretudo a partir de 2015 (para mais detalhes sobre as reformas, consultar o nosso artigo, disponível em https://matamba.ao/ao/publicacao/detalhes/kla6Bb6X0q).

Com efeito, não obstante ser vasta e boa a legislação (leis e regulamentos) aplicável à constituição e funcionamento de sociedades comerciais, em muitas instituições públicas e privadas não tem sido possível aos cidadãos e empresas beneficiar das reformas.

Uma dessas questões que demonstra tal dissonância prende-se com as informações e documentos que devem ser solicitados, aquando da abertura de contas bancárias de sociedades comerciais.

Em vários bancos comerciais, que aqui não serão citados por uma questão de ética, tem sido frequente exigir-se, dentre outros, os seguintes documentos: (i) certificado de admissibilidade de firma; (ii) publicação em Diário da República.

Faz sentido e é legítima a exigência?

A resposta poderia ser dada rapidamente, remetendo o distinto leitor para as normas que regulam a matéria, em especial o pertinente aviso do Banco Nacional de Angola.

Todavia, entende-se que convém fazer um progresso paulatino, para que seja mais simples a percepção da resposta.

 

  1. Exigência do certificado de admissibilidade de firma para sociedades em constituição

Quanto ao certificado de admissibilidade de firma, passado pelo Ficheiro Central de Denominações Sociais, o mesmo destina-se a garantir que a firma escolhida pelo(s) sócio(s) esteja em conformidade com os princípios que devem enformar a constituição das mesmas, em especial os da novidade, capacidade distintiva, verdade e legalidade), que podem ser depreendidos das normas do Código Comercial (24.º), da Lei das Sociedades Comerciais (artigo 12.º) e  mesmo do Regime Geral das Instituições Financeiras (artigo 16.º).

Exigir-se o certificado de admissibilidade para efeitos de abertura de conta bancária faz sentido, única e exclusivamente, no caso de sociedades que abram a conta bancária antes de concluído o processo de constituição, para efeitos de depósito do valor do capital social, quando os sócios não queiram ou não possam diferir a realização do mesmo (capital social), diferimento esse que é admissível, em marcos gerais, nos termos do artigo 28.º da Lei das Sociedades Comerciais, com a redacção que resultou do artigo 19.º da Lei da Simplificação do Processo de Constituição de Sociedades Comerciais.  

E faz sentido, pois tratando-se de sociedade constituenda, não dispõe, ainda, de certidão registo comercial, principal documento de uma sociedade comercial.

Com efeito, as sociedades em constituição dispõem, apenas, do Certificado de Admissibilidade de Firma, do Projecto de Estatutos e o Número de Identificação Fiscal (NIF), sendo esses os únicos documentos que podem ser exigidos.

Relativamente à abertura de contas provisórias para as sociedades constituendas, o Aviso n.º 1/2023, de 30 de Janeiro, é omisso e os bancos não dispõem de “orientação” do que solicitar, o que permite perceber porque é que alguns bancos comerciais não permitem a abertura de contas bancárias de sociedades em constituição.

Por isso, seria bom que o BNA aprovasse novo aviso (ou no mínimo que altera-se o vigente), incluindo a questão do procedimento (informação e documentação a solicitar) para abertura e movimentação de contas bancárias de sociedades em constituição.

Não obstante o acabado de dizer (omissão do Aviso 1/2023, de 30 de Janeiro...), não se pode afirmar que não exista norma que legitime a abertura de tais contas bancárias, pois o artigo 523.º da Lei das Sociedades Comerciais exige, desde 2004, que os bancos comerciais criem condições para abertura dessas contas.

 

  1. Exigência do certificado de admissibilidade de firma para sociedades já constituídas

Uma sociedade ganha existência jurídica apenas depois de o seu acto constitutivo (estatutos ou contrato de sociedade – que pode ou não ser celebrado por escritura pública) estar inscrito no registo comercial (conferir os artigos 20.º e 5.º da Lei das Sociedades Comerciais), sendo tal facto confirmado pela passagem de uma certidão do registo comercial da sociedade em questão.

A partir desse momento, o principal e mais importante documento de uma sociedade é a certidão do registo comercial, onde constam os factos jurídicos mais importantes, quer ligados à constituição, como ao dia-a-dia da sociedade.

Por isso, para abertura de conta bancária, apenas faz sentido exigir-se esse documento (certidão do registo comercial), sendo que a firma – autorizada pelo Ficheiro Central de Denominações Sociais – e os demais elementos obrigatórios do acto constitutivo, nos termos do artigo 10.º a Lei das Sociedades Comerciais, apenas se tornam definitivos com a sua inscrição no registo comercial.

Com efeito, o conservador do registo comercial deve garantir, em última análise, a conformidade de todos os elementos constantes do acto constitutivo (ou de alteração, quando disso se tratar) com a lei, nos termos do artigo 5.º do Código de Registo Predial, aplicado por força do artigo 175.º da Lei da Simplificação dos Registos Predial, Comercial, e Serviço Notarial.

O Aviso n.º 1/2023, de 30 de Janeiro, do Banco Nacional de Angola, estabelece tanto as informações, como os documentos que devem ser solicitados, aquando da abertura de contas bancárias, para sociedades comerciais.

No anexo I (formulário de abertura de contas bancárias), ponto I (recolha de informações relativas aos clientes), n.º 2 (identificação de pessoas colectivas) é exigido em termos de informação, além de outros, “a denominação social completa”; e no ponto II (documentos que devem ser solicitados ao cliente), n.º 2 (pessoas colectivas), é exigida a apresentação (i) da certidão do registo comercial ou (ii) outro documento público comprovativo, nomeadamente, (ii.i) diário da república ou (ii.ii) cópia que comprova a publicação no site oficial de entidade pública competente (conferir o endereço https://gue.gov.ao/portal/publicacao e a justificação legal e regulamentar, aí apresentada para a publicação online).

Portanto, em rigor, o regulador (o Banco Nacional de Angola), exige apenas a certidão do registo comercial, sendo os demais documentos alternativos à citada certidão comercial.

Destarte, a exigência que alguns bancos comerciais fazem, no sentido de serem apresentados o certificado de admissibilidade de firma, os estatutos, a certidão comercial e a publicação em Diário da República, são ilegais.

E o pior de tudo é que várias vezes, caso a sociedade tenha a “sorte” de abrir a conta bancária, a mesma (sociedade) encontrar dificuldades para movimentá-la, chegando-se, mesmo, a congelar as contas, pela não apresentação do certificado de admissibilidade, de sociedade já constituída.

As áreas de compliance, os gabinetes ou direcções jurídicas e, em última instância, as administrações dos bancos comerciais devem garantir que as suas agências actuem em conformidade com a lei, não solicitando documentos não obrigatórios e que nada acrescentam ao processo de abertura de contas bancárias.

 

  1. Exigência de publicação em diário da república

Essa exigência apenas se pode colocar a despeito de sociedades já constituídas, pelo que serão essas o objecto da análise, nesse ponto.

Desde logo, é preciso referir-se que não existe qualquer exigência legal de apresentação do Diário da República, para efeitos de abertura de conta bancária de sociedades comerciais.

Com efeito e em primeiro lugar, a publicação em Diário da República dos actos relativos à vida das sociedades comerciais deixou de ser obrigatório em 2015, nos termos dos artigos 14.º e 15.º da Lei da Simplificação do Processo de Constituição de Sociedades Comerciais; essa Lei foi depois objecto de regulamentação, visando a sua efectiva implementação, pelo do Decreto Presidencial n.º 153/16, de 5 de Agosto, com as alterações que lhe foram introduzidas pelo Decreto Presidencial n.º 60/20, de 3 de Março, e pelo Decreto Executivo do Ministro da Justiça e dos Direitos Humanos n.º 168/20, de 1 de Junho.

Hoje, as publicações são feitas no endereço gue.gov.ao.

Em segundo lugar, o Aviso n.º 1/2023, de 30 de Janeiro [ver anexo I (formulário de abertura de contas bancárias), ponto II (documentos que devem ser solicitados ao cliente), n.º 2 (pessoas colectivas)], apresenta a publicação em Diário da República ou no formato digital apenas como alternativa à certidão do registo comercial.

E note-se que o mencionado aviso já fala na publicação feita no site oficial da entidade pública competente.

No seu dia-a-dia, as sociedades são muitas vezes obrigadas a encontrar alternativas para conseguirem ter a publicação em Diário da República, pelo que (i) dirigem-se a um cartório notarial fora do Guiché Único da Empresa, (ii) solicitam a aposição do selo branco no contrato de sociedade, sendo que, depois disso, (iii) deslocam-se à Imprensa Nacional e solicitam a publicação, apresentando o pacto com o selo branco de um cartório notarial, para o devido efeito; e a imprensa publica...

Embora as sociedades consigam apresentar a publicação em Diário da República, para a abertura de conta bancária junto de alguns bancos comerciais, por essa via ilegal, é preciso sublinhar que os cartórios que assim procedem, bem como a própria Imprensa Nacional, praticam actos supérfluos, além de ilegais, como já se mencionou.

Além do mais, acrescenta-se, por essa via, um procedimento que dificulta a vida das sociedades, impondo-lhes custos e desgaste desnecessários, que no final do dia serão transferidos ao consumidor final dos seus serviços e/ou produtos, o que se traduzirá num aumento dos preços, infelizmente.

 

  1. Notas finais

O procedimento de abertura de contas bancárias para sociedades comerciais em constituição, está apenas previsto na Lei das Sociedades Comerciais, sendo omisso o Aviso n.º 1/2023, de 30 de Janeiro, do Banco Nacional de Angola.

Para essas sociedades constituendas, apenas faz sentido a exigência do Certificado de Admissibilidade, do Projecto de Estatutos e Número de Identificação Fiscal, por serem os únicos documentos existentes, nessa fase.

Não se pode recusar a abertura dessas contas de sociedades em constituição, pois tal resulta do artigo 523.º da Lei das Sociedades Comerciais, há já quase 20 anos.

Seria de todo desejável que o Banco Nacional de Angola alterasse o Aviso vigente e publica-se novo, onde constasse, já, o procedimento (informação e documentos a solicitar) para abertura de contas de sociedades em constituição, nos termos do artigo 523.º da Lei das Sociedades Comerciais, já citado.

Para a abertura de contas bancárias de sociedades já constituídas, o Aviso n.º 1/2023, de 30 de Janeiro é claro, quanto à informação e documentação a solicitar. Com efeito, os bancos devem solicitar a certidão do registo comercial (principal documento, repita-se) ou, em alternativa, a publicação feita no site da entidade competente (gue.gov.ao), de acordo com o disposto no referido Aviso e na Lei da Simplificação do Processo de Constituição de Sociedades Comerciais.

As áreas de compliance e jurídicas dos bancos comerciais deveriam alertar as suas administrações da existência de práticas que não estão em conformidade com a legislação aplicável, sendo que, em particular, as administrações dos bancos deveriam garantir a necessária conformidade, para evitar-se danos patrimoniais (pagamento de multa) e reputacionais.

Os bancos onde a nível central seja já dominado o referido no presente artigo devem garantir que a informação flua e seja observada por todas as suas agências.

As sociedades sujeitas a tais procedimentos ilegais devem recusar-se e comunicar ao regulador, para os devidos efeitos.

O Banco Nacional de Angola deve fiscalizar mais os processos de abertura de contas e, numa primeira fase, relembrar, pedagogicamente, o disposto na legislação vigente sobre as matérias em análise para, em seguida e em caso de incumprimento, aplicar as devidas e necessárias sanções.

 

E a si, caro leitor, o que lhe parece?

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Muito obrigado pela leitura.

Ireneu Matamba

Ireneu Matamba

Mestre em direito pela Universidade do Minho; Aluno do Doutoramento em Direito Civil na UBA; Pós-graduado em direito das sociedades comerciais; Pós-graduado em direito do trabalho e segurança social; Co-fundador do portal Matamba - Direito & Tecnologia; Ex Director Geral do Guiché Único da Empresa; Ex Director Nacional de Identificação, Registos e Notariado; Docente universitário há 16 anos; Consultor jurídico (direito comercial, direito das sociedades comerciais, direito da família e sucessões e direito dos registos e notariado).

Áreas
Direito Financeiro Direito Societário

Palavras-chave
abertura conta bancária procedimentos
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Comentários (3)

  • Rafael Miguel Afonso Zangilu
    Rafael Miguel Afonso Zangilu Cerca de 2 anos atrás

    Li e gostei, está quase tudo dito, é de todo importante que o BNA, como banco emissor e regulador que tome conhecimento destas matérias afim de evitar o desenvolvimento destas situações. O país precisa de mais empresas, é mister que haja simplificação no processo de constituição e abertura de contas bancárias. O BNA regularia pondo os documentos necessários taxativamente ou mínimos para tal efeito.

  • Ismael Luís Amaro Jacob
    Ismael Luís Amaro Jacob Cerca de 2 anos atrás

    Mais uma vez fecho um blog com sentimento de aula recebida e entendida. Relativamente a propedêutica opinião que consigo conceber a esta altura, devo confessar que considero uma fiscalização do BNA como uma solução paliativa ou seja que mitiga a doença, mas não cura com a urgência que precisamos. Contudo, Sou um ferrenho adepto da solução avançada pelo autor que consiste em o Banco Nacional de Angola alterar o Aviso vigente e publicar novo, onde constasse, já, o procedimento ( documentos a solicitar) para abertura de contas de sociedades em constituição e as sanções para quem não as cumprisse, nos termos do artigo 523.º da Lei das Sociedade comerciais. Motivo o autor a continuar com estes textos, pois ,como dizia Helciane Pereira "Compartilhar conhecimento , é o mesmo que disseminar desenvolvimento" .

  • Maria Telo Soares
    Maria Telo Soares Cerca de 2 anos atrás

    Primeiro contacto que tive com o site e o conteúdo. Muito bem esclarecido, é uma aula completa. Parabéns e muitos sucessos, Dr.

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