O Cônjuge do Executado e a Separação Judicial de Pessoas e Bens 

por Evaristo José Solano em 08 de Jun, 2021 Artigo
1327 leituras
O Cônjuge do Executado e a Separação Judicial de Pessoas e Bens 

"Seria justo (um dos fins do direito) que o credor, de boa fé, na frustração de não ter podido obter o pagamento do seu crédito pela via de negociação, não ter igualmente a possibilidade de obter, em sede de acção executiva, a satisfação do seu crédito pelo simples facto de os bens próprios não serem suficientes e os bens comuns (apesar de numerosos e valiosos) não servirem para pagar a dívida pelo facto de o devedor encontrar-se unido pelo casamento e protegido pelo regime da moratória legal?"

 

  1. Motivação para a escrita do artigo

O presente artigo foi redigido como resposta a um desafio colocado pela estimada Dra. Isabel Sambo Francisco, no sentido de colocar à reflexão dos leitores do seu blog aspectos sociais (de preferência no âmbito das relações familiares) juridicamente  relevantes a partir dos quais  esperam-se reações submetidas que conduzem à percepção não só do número de leitores interessados neste segmento de abordagem jurídica como também constituir-se mais um instrumento para a edificação de uma cada vez maior literacia jurídica da sociedade angolana.

O tema proposto é fruto de uma série de questões que se colocam à volta dos entraves à dinâmica do comércio jurídico, em virtude das soluções que vigoram/não vigoram no direito da família, em particular no tocante à separação judicial de pessoas e bens.

 

  1. Actualização e conformação da ordem jurídica angolana no pós-independência

O legislador angolano, no afã de actualizar e conformar a ordem jurídica, nos anos oitenta  entendeu, e bem, alterar certos diplomas jurídicos que conduzissem a uma melhor solução dos conflitos de interesses emergentes em consequência do inevitável “desenvolvimento regressivo-aposterior da Ordem Jurídica”  (Bronze p. 241).

O Código da Família não escapou a essa inovação. Em certos casos, essas alterações foram feitas sem se ter em conta a coerência do Sistema: soluções justas apresentadas num diploma constituíram soluções injustas noutros.

 

  1. Insuficiência dos bens próprios de um dos cônjuges para o pagamento de uma dívida não sujeita à moratória legal

Questão controversa coloca-se nos casos em que os bens próprios de um dos cônjuges não se mostrem suficientes para o pagamento da dívida nos casos em que não haja lugar à moratória.

Sendo a dívida incomunicável e não sujeita a moratória do art. 61.º do Cód. da Família, e se os bens próprios não forem suficientes para fazerem face à dívida porém existirem bens comuns, o exequente só poderá nomear os bens sujeitos à meação depois de dissolvido ou anulado o casamento, art. 64.º, n.º 1 do Cód. Da Família, pois, ao que consta, o ordenamento jurídico angolano não acolhe o instituto da separação judicial de pessoas e  bens.

Neste sentido, o credor deverá esperar até ao momento em que o cumprimento se torne exigível.

A letra do nº 1 do art. 825.º do CPC estatui que na execução movida contra um só dos cônjuges, a execução dos bens comuns fica suspensa, depois de penhorados o direito à meação do devedor, até ser exigível o cumprimento, nos termos da lei substantiva[1].

O nº 2 deste artigo diz que podem ser penhorados os bens comuns do casal, contanto que o exequente, ao nomeá-lo à penhora peça a citação do cônjuge do executado, para requerer a separação de bens.  

Em relação aos bens insuficientes para o pagamento da dívida de um dos cônjuges, o nosso Código de Família restringe, sobre maneira, a aplicabilidade do art. 825.º.  A dívida será exigível a partir do momento da meação dos bens comuns.

Por seu turno, o Código da Família, no seu art. 64.º,  diz claramente que o cumprimento a que se refere o art. 825.º CPC só será exigível depois de dissolvido ou anulado o casamento.

 

  1. Possibilidade de se invocar a figura de separação judicial de bens

Porém, sustenta-se que o regime de separação judicial de pessoas e bens não foi totalmente retirado do ordenamento jurídico angolano. Com efeito, outros aspectos da vida jurídica não necessariamente relação marido-mulher, podem impor a separação de bens na constância do casamento cujo regime patrimonial seja o de comunhão de adquirido.    

A separação de bens, nos termos em que a colocamos, só foi retirada da Ordem Jurídica angolana nos casos em que, na relação estrita entre os dois (cônjuges), actos contínuos ou fortuitos imputáveis a um deles prejudiquem o património comum. O cônjuge que se sente lesado não pode lançar mãos do mecanismo da separação de bens para acautelar o seu património que, no entanto, não prejudicaria o casamento que os mantém unidos. 

Mas, outros factos que envolvam terceiros justificam a separação de bens. É o que acontece com o credor exequente. O 825.º permite a citação do cônjuge para separar os bens, porém, este regime é inviabilizado pela norma substantiva do Código da Família.

De modo diferente, nos processos de falência, quando se tratar de um cônjuge comerciante em nome individual casado em regime de comunhão de adquirido, o art. 1237.º dá a possibilidade de se afectar a parte dos bens do cônjuge falido e salvar a parte dos bens do outro em consequência da meação (Baptista p. 87).

Na execução movida contra um só dos cônjuges à luz do art. 825.º, pode o outro requerer a separação de bens nos termos do art. 1408.º. Portanto, não cremos que o referido artigo esteja revogado. E se assim é, podemos com convicção dizer que o Instituto da Separação Judicial de Pessoas e Bens tem-se aplicado em certas relações jurídicas em benefício do credor.

A ideia é que sempre que houver ingerência de um terceiro credor, o outro cônjuge não pode ser prejudicado, salvará a parte que lhe couber, por meio de um processo autónomo de inventário para partilha dos bens comuns.

Porque se assim não fosse, credor só podia esperar pela satisfação do seu crédito quando se dissolvesse ou se anulasse o casamento. Aceitar que é essa a solução apontada pelo nosso ordenamento jurídico é, sem dúvidas, colocar um entrave à dinâmica do comércio jurídico e, consequentemente, os sujeitos teriam resistência em contratar com pessoas casadas em regime de comunhão de adquiridos.

Por outro lado, se o cônjuge devedor sentir-se realmente na obrigação de não defraudar a expectativa do credor e sugerir a  meação dos bens comuns, o entendimento que temos do regime traçado pelo Cód. da Família é que, para o efeito, o casal deve também promover o divórcio. Mas, impõe afirmar que o Código da Família não considera essa pretensão como motivo bastante para o divórcio.

 

  1. O exemplo ao nível do regime de execução fiscal

No regime de execução fiscal, o legislador marcou um passo em frente no sentido da protecção do credor, dando melhor tratamento ao formato separar património comum e manter o casamento. O cônjuge do executado, em regra, só é chamado nos casos em que a dívida seja comunicável de acordo com o regime de bens do casamento, tendo o como consequência proporcionar benefício comum do casal e, portanto, da responsabilidade de ambos os cônjuges, art. 54.º, n.º 1 do Código de Execução Fiscal (CEF).

Todavia, nos termos do art. 54.º, n.º 2, do CEF, o cônjuge do executado pode ser chamado à execução quando a dívida for da responsabilidade exclusiva daquele e os seus bens próprios não forem suficientes, incluindo quando a execução for para cobrança de multa fiscal que a este tiver sido aplicada (Paca p. 343). O cônjuge será chamado para requerer a separação judicial de bens, dentro do prazo de dez dias.

É um claro avanço à tutela do credor e um acertado reforço à dinâmica do comércio jurídico. E estando Angola a viver a era das Reformas, incluindo a da justiça e do direito, urge proceder a devida alteração nas normas do Cód. da Família que a separação judicial de pessoas e bens.

    

  1. Conclusão

A perfilhação da orientação que defende a existência da separação de pessoas e bens é a que melhor nos conduz à harmonia do sistema jurídico. Não seria justo (um dos fins do direito) que o credor, de boa fé, na frustração  de não ter podido obter o pagamento do seu crédito pela via de negociação, não ter  igualmente a possibilidade de obter, em sede de acção executiva, a satisfação do seu crédito pelo simples facto de os bens próprios não serem suficientes e os bens comuns (apesar de numerosos e valiosos) não servirem para pagar a dívida pelo facto de o devedor encontrar-se unido pelo casamento.

E a si caro leitor, o que lhe parece? Partilhe as suas ideias nos comentários abaixo.

Muito obrigado pela leitura.

Evaristo José Solano

Evaristo José Solano

Doutor em Direito, Professor Auxiliar da Faculdade de Direito da Universidade Agostinho Neto.

Áreas
Direito da Família Direito Comercial Processo Civil

Palavras-chave
Cônjuge do executado separação judicial
Partilhe nas redes sociais

Comentários (0)

Enviar Comentário