1. Notas iniciais
Os comerciantes, no exercício e por causa da sua actividade, procedem à aquisição de bens e serviços, chegando muitas vezes a contrair dívidas. A questão que se coloca é a de saber se em caso de incumprimento de um comerciante casado no regime de comunhão de adquiridos, tal dívida deve ser considerada comunicável ao outro cônjuge porque feita em proveito comum do casal? Se se quiser, pode-se perguntar se o cônjuge do comerciante pode ser demandado?
Antes mesmo da resposta é necessário uma caracterização, ainda que breve, do regime de comunhão de adquiridos.
2. Breve caracterização do regime de comunhão de adquiridos
O regime de comunhão de adquiridos caracteriza-se pelo facto de todos os bens adquiridos a título oneroso na constância do casamento, bem como os salários, pensões, frutos e quaisquer outros rendimentos regulares recebidos por qualquer um dos cônjuges durante a constância do casamento serem bens comuns do casal (artigo 51º do Código da Família).
Já no tocante às dívidas, nos termos do artigo 61º, nº 1 do Código da Família, os cônjuges são solidariamente responsáveis pelas dívidas contraídas por ambos ou por um deles para ocorrer aos encargos gerais da vida familiar ou em proveito comum do casal.
Dívidas contraídas para ocorrer aos encargos gerais/normais da vida familiar são as realizadas para suprir as necessidades básicas ou essenciais do lar, atendendo sempre ao padrão de vida dos cônjuges, quais sejam o mobiliário, formação dos filhos, cuidados de saúde, alimentação, entre outras.
Já as dívidas contraídas em proveito comum do casal são aquelas que, resultando de uma actividade económica lato sensu, são capazes de gerar lucro do qual beneficiará a família. Note-se que não é necessário que o lucro ocorra como tal, bastando a possibilidade de o mesmo se verificar.
São exemplos dessas últimas as dívidas resultantes de mútuo (empréstimo) bancário feito para a compra, montagem e/ou apetrechamento de um estabelecimento comercial (um restaurante, um loja de conveniência, por exemplo).
3. Qual a natureza das dívidas do comerciante casado no regime de comunhão de adquiridos?
Voltando a questão, cumpre inicialmente aferir a natureza da dívida do cônjuge comerciante, ou, dito de outro modo, se se deve considerar feita para ocorrer aos encargos normais da vida familiar ou se em proveito comum do casal.
Entende-se que tal dívida apenas pode ser qualificada como em proveito comum do casal, em função do sobredito quanto ao conceito de cada uma delas (ver ponto 2).
Com efeito, no exercício do comércio existe, em princípio, a possibilidade de lucrar; e esse lucro, via de regra, beneficia aos membros da família, pelo que, se o cônjuge do comerciante usufrui do lucro (caso exista), deve também arcar com as dívidas (Ubi commoda, ibi incommoda). Portanto, as dívidas do cônjuge comerciante são em proveito comum do casal e, em condições normais, devem-se considerar extensíveis ao outro cônjuge. É este o sentido normal de justiça.
4. Tratamento da questão da natureza das dívidas do comerciante casado segundo a legislação angolana vigente
Todavia, o Código da Família entende que o proveito comum do casal não se presume, existindo apenas nos nos casos em que a lei o declarar (conferir o artigo 61.º, n.º 3 do Código da Família). O curioso é que nenhuma outra lei faz tal declração, que seria a desejável pelos fundamentos apresentados acima. O Código Comercial, em particular, consagrou que as dívidas do comerciante presumem-se feitas no exercício do seu comércio (artigo 15º do Código Comercial).
Esta solução resultou da alteração ao Código Comercial feita pela Lei n.º 6/03, de 3 de Março, e é claramente diferente da redacção anterior (de 28 de Junho de 1888), em que se dispunha que "as dívidas provenientes de actos comerciais contraídas só pelo marido comerciante, sem outorga da mulher, presumir-se-ão aplicadas em proveito comu dos cônjuges" (conferir artigo 15.º do Código Comercial antes da sobredita alteração de 2003).
Perguntar-se-á qual o problema que tal dissonância poderá causar?
A resposta é simples: dificulta a concessão de crédito, por diminuir as garantias do credor, pois este terá de provar que certa dívida foi, de facto, feita em proveito comum do casal. Em termos práticos, o comerciante, para melhor garantir o seu crédito, exigirá que o cônjuge do comerciante se co-obrigue para que ele possa conceder o crédito, o que per se tornará a concessão do crédito burocrática; e existindo, por hipótese, algum problema ao nível familiar, não é difícil perceber-se que a recusa em se co-obrigar será um facto.
A solução ora vigente em Angola ao nível do Código Comercial (artigo 15.º) é idêntica a existente no direito português (artigo 15.º do Código Comercial português), tendo muito provavelmente aquela se inspirado nessa; todavia, no caso português a solução do Código Comercial está em perfeita sintonia com o disposto no artigo 1691.º, nº 1, al. d) do Código Civil, que dispõe são da responsabilidade de ambos os cônjuges …. d) As dívidas contraídas por qualquer dos cônjuges no exercício do coméricio, salvo se a) se provar que não foram contraídas em proveito comum do casal, ou b) se vigorar entre eles o regime de separação de bens;
Com efeito, no ordenamento português as dívidas do cônjuge comerciantes são, em princípio, comunicáveis ao seu cônjuge (solução desejável), enquanto no ordenamento jurídico angolano a solução é diametralmente oposta, sendo qualificadas como dívidas próprias ou da exclusiva responsabilidade do cônjuge comerciante, não podendo o cônjuge do comerciante ser demandado pela dívida contraída pelo seu cônjuge e no exercício do seu comércio.
No caso angolano há claramente, assim, uma diminuição das garantias do credor do comerciante o que em última análise, pode representar um entrave à economia e ao desenvolvimento do País, pois quem pode conceder crédito (em especial os bancos) ou não concederão aos comerciantes casados no regime de comunhão de adquiridos, ou o farão com muita burocracia e demora, pois as regras de prudência aconselham a pedir ao cônjuge do comerciante que se co-obrigue (assine) com o seu cônjuge, que dê o seu consentimento. E o comércio não se compadece com essa burocracia, ainda que forçada pelas leis vigentes.
5. Sugestões de iure condendo
Sugere-se, pelo supracitado, que a legislação pertinente e em vigor seja revista, alterando-se o disposto no Código da Família que, não obstante ser anterior à alteração feita ao artigo 15.º do Código Comercial, parecer ser o lugar ou a norma com maior vocação para definir essa questão.
E a si, estimado leitor, o que lhe parece? Concorda com a solução vigente?
Muito obrigado pela sua leitura.