Breves notas sobre a eliminação da obrigatoriedade de escrituras públicas para a maioria dos actos da vida das sociedades comerciais

por Ireneu Matamba em 06 de Feb, 2024 Artigo
2120 leituras
Breves notas sobre a eliminação da obrigatoriedade de escrituras públicas para a maioria dos actos da vida das sociedades comerciais

1. Introito
Em 2015, na senda de uma série de reformas que o Estado angolano vem implementando visando a melhoria do ambiente de negócios no país, foi aprovada a Lei n.º 11/15, de 17 de Junho, abreviadamente designada de Lei da Simplificação do Processo de Constituição de Sociedades Comerciais.
A Lei visou simplificar ao máximo possível, o dia-a-dia das sociedades comerciais, tendo procedido a eliminação da obrigatoriedade da escritura pública para a generalidade dos actos da vida das sociedades comerciais.
Infelizmente nota-se uma actuação contrária a decisão do país e ao esforço do Titular do Poder Executivo em atrair cada vez mais investimento privado, nacional e estrangeiro, pelo que apresenta-se, a seguir, contribuições para uma melhor percepção por parte desses operadores que andam na contramão, a fim de não deitarem por água abaixo, a simplificação pretendida.
Antes mesmo do desenvolvimento, refira-se já que a designação resumida do diploma – Lei da Simplificação do Processo de Constituição de Sociedades Comerciais – transmite uma ideia redutora do diploma, pois não permite perceber, a partida, que também cuidou de aspectos ligados à alteração das sociedades comerciais, pelo que sublinha-se esse facto.

2. Objectivo e dogmática da solução
A Lei n.º 11/15, de 17 de Janeiro, visou a eliminação da forma escritura pública da generalidade dos actos da vida das sociedades comerciais, como de forma clara resulta do artigo 1.º, al. a) e do artigo 3.º, n.º 1:
     “Artigo 1.º (Objecto e âmbito): A presente Lei tem por objecto a adopção de medidas de simplificação do processo de constituição de sociedades comerciais, unipessoais e pluripessoais, mediante:
     a) A eliminação da obrigatoriedade da forma de escritura pública relativa aos actos da vida das sociedades comerciais (...)”;
     “Artigo 3.º (Forma dos actos): 1. São facultativas as escrituras públicas relativas a
actos da vida das sociedades comerciais, nomeadamente, as escrituras públicas para constituição, alteração do contrato ou dos estatutos ou ainda, aumento do capital social, alteração da sede ou objecto social, dissolução, fusão ou cisão das sociedades comerciais.”
 O próprio preâmbulo da lei de forma enfática estabelece:
     “Considera-se oportuna e conveniente a eliminação da obrigatoriedade de escritura pública na generalidade dos actos da vida das sociedades (...).”
A solução do legislador nacional mais não é do que o concretizar do princípio constitucional da livre iniciativa económica e empresarial, consagrado no artigo 14.º da Constituição da República de Angola.
Aliás, o próprio preâmbulo da lei objecto da presente análise é claro a esse respeito, ao afirmar que:
     “Afigura-se pertinente proceder à efectivação plena do direito à livre iniciativa privada enquanto força motriz do desenvolvimento económico e da actividade empresarial, direito constitucionalmente consagrado, cuja materialização passa, identicamente, pela redução decisiva dos entraves administrativos no processo de criação de novas empresas.”

3. A quem compete decidir sobre a forma do acto?
Hoje, sempre nos termos do diploma em vigor, em geral cabe aos interessados decidir se pretendem praticar os actos relativos à uma sociedade comercial pela forma simplificada (isto é, sem escritura pública) ou da maneira mais formal (por escritura pública), quer sejam actos de constituição, quer sejam actos de alteração.
Em caso de constituição, por exemplo, os interessados devem perceber que a opção pela forma simplificada implicará adoptar o modelo de pacto social (contrato de sociedade) pré-estabelecido, cuja consequência será uma forte limitação à liberdade contratual.
Caso o modelo não satisfaça aos interessados, então optarão pela forma escritura pública. Mas, repete-se, os interessados decidirão.

4. Excepções quanto ao carácter facultativo da escritura pública
Apenas não será assim, isto é, a forma escritura pública não será facultativa, caso se verifique uma das duas excepções legais abaixo discriminadas:
     - A primeira excepção resulta de o regime de transmissão do bem com o qual alguém entre para a sociedade (entrada em espécie) exigir a forma escritura pública.
Tal é o caso de alguém entrar para uma sociedade com um imóvel (uma fracção autónoma num edifício, que poderá servir para albergar a sede da sociedade), pois será exigida a forma escritura pública para a sua transmissão, nos termos do artigo 875.º do Código Civil[1].
Tal também será o caso de alguém entrar para a sociedade com um estabelecimento comercial, por exemplo um restaurante, pois o regime para a sua transmissão, previsto no artigo 125.º, n.º 3, da Lei do Arrendamento Urbano, exige que se obedeça à forma escritura pública.
     - A segunda excepção ocorrerá na hipótese de transformação de uma sociedade, isto é, sempre que a sociedade decida mudar de natureza jurídica, deixando, por exemplo, de ser uma sociedade pluripessoal por quotas e passando a ser unipessoal anónima.
É o que decorre do artigo 1.º, al. a), segunda parte, do artigo 3.º, n.º 3, segunda parte, ambos da Lei 11/15, de 17 de Junho, e do artigo 134.º da Lei das Sociedades Comerciais, que mantém a sua redação original.

5.     A falsa obrigatoriedade de se observar a forma usada para a constituição para a determinação da forma da alteração de uma sociedade comercial
Na senda das soluções que consagrou, a Lei n.º 11/15, de 17 de Janeiro procedeu a alteração parcial de vários diplomas legais, com destaque para a Lei das Sociedades Comerciais.
Tem sido frequente a alegação, por parte de notários e conservadores do registo comercial, de que a nova redacção do n.º 2 do artigo 90.º da Lei das Sociedades Comerciais veio exigir que a forma adoptada para a constituição de uma sociedade, seja ela forma voluntária ou imposta por lei, determina a forma de alteração de uma sociedade comercial.
Eis o que estabelece o artigo 90.º, n.º 2:
“artigo 90.º, n.º 2: A alteração do contrato de sociedade deliberada nos termos do número anterior, está sujeita à mesma forma do acto de constituição da sociedade.”
Contra tal posição, apresentam-se os argumentos seguintes:
Argumento teleológico: qual a finalidade visada pelo legislador com a Lei n.º 11/15, de 17 de Junho?
Essa poderia ser a primeira pergunta que quem questiona deveria colocar-se, para efeitos de melhor interpretação.
O preâmbulo da lei objecto da presente observação refere de forma cristalina, reitera-se, que “Considera-se oportuna e conveniente a eliminação da obrigatoriedade de escritura pública na generalidade dos actos da vida das sociedades (...).”
Com efeito, uma aplicação contrária à teleologia da norma significaria que o intérprete carece de “ajustar” ou “afinar” a sua acção com o intuito de garantir que se atinja o desiderato da lei.
Argumento sistemático: o artigo 90.º, n.º 2, não deve ser lido isoladamente, devendo-se, antes, procurar-se compreendê-lo à luz do que decorre de outras normas resultantes da lei em análise.
Com efeito, tal como já foi mencionado, o legislador foi bastante claro quanto as excepções (entrada com bens cuja transmissão exija escritura púbica e a transformação – lê-se, mutatis mutandis, nos artigos 1.º, alínea a. e 3.º, n.º 1, da Lei 11/15, de 17 de Junho) à regra do carácter facultativo da escritura pública.
O legislador fez questão de sublinhar que mesmo em caso de “alteração do contrato ou dos estatutos ou ainda, aumento do capital social, alteração da sede ou objecto social, dissolução, fusão ou cisão das sociedades comerciais”, não é necessária escritura pública.
E continuando mais um pouco, em caso de cessão de quotas, para dar um exemplo mais concreto, na visão que aqui se está a criticar, se a sociedade em questão tiver sido constituída por escritura pública, a “transmissão” seria feita por escritura pública.
Tal entendimento revela-se, mais uma vez, não apenas sem fundamento, mas sobretudo ilegal. Com efeito, o artigo 251.º da Lei das Sociedades Comerciais, com a redacção que resultou da Lei n.º 11/15, de 17 de Janeiro, dispõe de forma reluzente que “a transmissão de quotas entre vivos deve ser reduzida a forma escrita com reconhecimento presencial das assinaturas e registada.”
O artigo não fala em escritura pública e não poderia fazê-lo porque estaria a ir contra tudo o que já foi dito, que determinou a solução “escritura pública facultativa”.
Como justificar, então, o referido entendimento?
Entende-se que não há justificação nem legal, nem plausível.
Mas, ainda assim, quem defende tal posição poderia dizer que o “texto do novo n.º 2 do artigo 90.º da Lei das Sociedades Comerciais” é claro, pelo que, independentemente de tudo, o seu entendimento tem pelo menos um mínimo de correspondência com o texto legal.
De facto, concorda-se que o texto é claro, no sentido de ter deixado claro que para a alteração deve-se observar a forma do acto de constituição e essa forma é a estabelecida nos artigos 1.º e 3.º da Lei 11/15, de 17 de Janeiro (documento particular, com reconhecimento presencial da assinatura, e não escritura pública, salva as já mencionadas excepções).
Contra essa última tentativa de justificação de uma conduta ilegal, pode-se dizer o seguinte:
A interpretação do artigo em questão (o novo n.º 2 do artigo 90.º da Lei das Sociedades Comerciais) exige que se coloque a questão “qual é a forma do acto de constituição?”, e não a pergunta “qual foi a forma do acto de constituição?”. A má colocação da pergunta, alinhada a ausência dos argumentos acima mencionados, é que tem levado a imposição de tais constrangimentos.
Para terminar, mesmo que o texto supostamente exigisse a observância da forma usada no acto de constituição da sociedade em questão, que não é o caso, seria necessário proceder-se a uma “redução teleológica”, que consistiria em reduzir-se o texto da lei para fazê-lo coincidir com a finalidade visada pelo legislador.  

6.     Notas finais
A melhoria do ambiente de negócios não é apenas tarefa do executivo, mas de todos e quem está investido no poder de materializar as iniciativas económicas e empresariais não deve desobedecer a lei e nem contrariar a acção do executivo.
Com o presente texto espera-se ter-se apresentado algum contributo a despeito do tema abordado.
 
E a si, caro leitor, o que lhe parece? Faça login e deixa os seus comentários abaixo.
 
 [1] Apenas não será assim (uso da forma escritura pública) se se tratar da transmissão de direito fundiário sobre um terreno (por exemplo do direito de superfície), pois dever-se-á aplicar o regime de transmissão previsto na lei de terras (consultar o artigo 61.º, maxime o seu n.º 2, da Lei de Terras).

Ireneu Matamba

Ireneu Matamba

Mestre em direito pela Universidade do Minho; Aluno do Doutoramento em Direito Civil na UBA; Pós-graduado em direito das sociedades comerciais; Pós-graduado em direito do trabalho e segurança social; Co-fundador do portal Matamba - Direito & Tecnologia; Ex Director Geral do Guiché Único da Empresa; Ex Director Nacional de Identificação, Registos e Notariado; Docente universitário há 16 anos; Consultor jurídico (direito comercial, direito das sociedades comerciais, direito da família e sucessões e direito dos registos e notariado).

Áreas
Direito Societário Direito dos Registos e Notariado

Palavras-chave
escritura pública documentos particular forma dos actos sociedades comerciais simplificação
Partilhe nas redes sociais

Comentários (11)

  • Ireneu Jacob Matamba Miguel
    Ireneu Jacob Matamba Miguel Cerca de 2 anos atrás

    Estimado Gelson Monteiro, infelizmente é como dizes. Creio que os professores de direito têm uma grande responsabilidade, pois aspectos básicos sobre metodologia jurídica são completamente ignorados pelo aplicadores com "licença em direito".

  • Ireneu Jacob Matamba Miguel
    Ireneu Jacob Matamba Miguel Cerca de 2 anos atrás

    Dra. Horchézia, quem agradece sou eu, por ter tirado um tempinho para ler, apesar das suas ingentes tarefas.

  • Vera Cristóvão Miranda
    Vera Cristóvão Miranda Cerca de 2 anos atrás

    Dr. Irineu é sempre um prazer ler o que o Dr. escreve. Mas a realidade está muito distante das suas doutas palavras. Tenho tido sucessivas recusas nas conservatórias em fazerem os registos sem escrituras publicas. Já reclamei hierarquicamente e nada. Os conservadores fazem tábua rasa da lei. Exigem tudo o que querem. E nós para satisfazer os clientes acabamos por ceder. Que podemos fazer? Como pode a classe dos Advogados unir-se e obter uma posição única e cumpridora da lei em todas as conservatórias?

Enviar Comentário