Cancelamento nas redes sociais: breves reflexões à luz do ordenamento jurídico angolano

por Deusineth Carina Capanda em 07 de May, 2023 Artigo
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Cancelamento nas redes sociais: breves reflexões à luz do ordenamento jurídico angolano

1. Introdução

O presente artigo resultou de um parecer que elaboramos a pedido do Sr. Ireneu Matamba, sobre a cultura do cancelamento nas redes sociais.

Tendo em conta a grande onda de "cancelamentos" existentes nas redes sociais desde o início de 2017 e que tem vindo a proliferar-se dia-após-dia nos "tribunais da internet", o Sr. Ireneu Matamba solicitou que em particular nos pronunciássemos sobre a juridicidade e justiça de tal cultura, bem como sobre os efeitos que poderá ter na nossa sociedade.

Recebida a proposta, o primeiro questionamento que nos fizemos foi se a referida cultura de cancelamento tem tratamento jurídico-legal em Angola.

É o que adiante procuraremos explicar.

 

2. Entendendo a cultura do cancelamento

A cultura do cancelamento é conhecida como sendo uma iniciativa de conscientização e interrupção do apoio a um artista, político, empresa, produto ou personalidade pública, devido a demonstração por parte destes, de algum tipo de postura considerada inaceitável.

A Cultura do Cancelamento pressupõe a exclusão imediata e/ou radical daquele que "com dolo ou mera culpa" tenha tido publicamente um posicionamento que é considerado "inaceitável", deixando assim o "cancelado" (que algumas vezes ao longo do presente parecer chamaremos de "arguido") em um estado de inexistência para a sociedade (ou apenas para as redes sociais).

Algumas vezes, essa inexistência é temporária, mas noutros casos, a inexistência só se "extingue" quando o "Arguido" demonstra que mudou, pelo menos exteriormente.

Em algumas "paragens" esta cultura tem sido tão normalizada que praticamente existe já um entendimento comum sobre os requisitos para a decisão de se cancelar uma pessoa, ou não, nas redes sociais, como é o caso do Brasil. Para os brasileiros, sempre que o posicionamento inaceitável de uma pessoa, nas redes sociais, disser respeito a questões ligadas a etnia, raça, opção sexual, feminismo, machismos, etc., não deverão existir dúvidas de que a melhor forma de actuação para reeducar ou consciencializar aquela pessoa, é cancelando-a.

 

3. Haverá tratamento jurídico para o cancelamento em Angola?

Em Angola, na nossa tão-amada terra, não se atingiu, ainda, o nível de termos um entendimento geral sobre os requisitos e/ou pressupostos estipulados ou ainda de termos conhecimento de forma unânime, sobre quando é que devemos cancelar ou não uma pessoa nas redes sociais, mas ainda assim, quase que diariamente temos nos deparado com situações em que se apela ao cancelamento de determinada  pessoa (uma figura pública, em grande parte dos casos).

Mas, a Constituição da República de Angola (CRA), prevê um conjunto de Direitos, Deveres, Liberdades e Garantias Fundamentais dos cidadãos, que nos poderão servir de suporte para fundamentar a licitude ou ilicitude da cultura do cancelamento em Angola.

 

4. Questões que a cultura do cancelamento levanta

4.1. Aspectos gerais

Ao longo do período que dedicamos para analisar e estudar o assunto em análise, surgiram-nos algumas questões, como:

  1. Estaremos em presença de uma nova forma de justiça por "mãos próprias"?
  2. Uma vez que as atitudes ditas como "inaceitáveis" por parte dos "juízes dos tribunais das redes sociais", são maioritariamente de carácter ideológico ou comportamental, será que é a internet o lugar ideal para avaliar essas atitudes?
  3. As pessoas canceladas, ou "arguidas", como preferimos chamar, terão direito ao Contraditório?
  4. Quais direitos são, eventualmente, violados com a cultura do cancelamento?

A Cultura do cancelamento aparenta ser, a primeira vista, uma via muito mais célere do que o recurso aos tribunais, para resolução de contendas e condenação daqueles que ‘’claudicam’’, tendo em conta (1) o nível de desenvolvimento global que vem "assolando" o mundo nos últimos anos e (2) o facto de que é a partir das redes sociais onde grande parte das pessoas expõe a sua opinião sobre determinada matéria.

Mas, as respostas iniciais mais lógicas para as perguntas da mente, nem sempre são as mais acertadas e justas na vida em sociedade.

 

4.2. Estaremos em presença de uma nova forma de ‘’justiça por mãos próprias’’?

R: Sim e, talvez devêssemos mudar o termo para "justiça por clique próprio", uma vez que tudo acontece de forma virtual e não há qualquer contacto físico com o "arguido".

Mas, assim como a ‘’justiça por mãos próprias’’ configura vingança e não é permitida nos termos da Lei, não é igualmente lícito julgar por clique próprio, uma vez que o artigo 10º da Declaração Universal do Direitos Humanos, consagra que "todo ser humano tem direito, em plena igualdade, a uma justa e pública audiência por parte de um tribunal independente e imparcial, para decidir seus direitos e deveres fundamento de qualquer acusação criminal contra ele." Vide também: artigos de 1.º a 12.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, e artigos 22.º, 23.º, 28.º e 29.º da Constituição da República de Angola (CRA).

 

4.3. Uma vez que as atitudes ditas como ‘’inaceitáveis’’ por parte dos “juízes dos tribunais das redes sociais” são maioritariamente de carácter ideológico ou comportamental, será que é a internet o lugar ideal para o ‘’efectivo cancelamento’’?

R: Não é competência do pacato cidadão que vagueia pelas redes sociais decidir sobre os diversos “crimes” praticados pelos seus compatriotas, por mais vontade que tenha de o fazer, terá de controlar os seus impulsos, pois o poder de julgar e decidir sobre as contendas cabe aos tribunais (consultar 174.º da Constituição da República de Angola). E o lugar do julgamento também é o tribunal. Atente-se, repetimos, aos riscos e consequências nefastas da justiça privada, na vida das pessoas, empresas e outras instituições.

Ademais, é preciso termos sempre em linha de conta que "todos têm direito a exprimir, divulgar e compartilhar livremente os seus pensamentos, as suas ideias e opiniões, pela palavra, imagem ou qualquer outro meio, bem como o direito e a liberdade de informar, de se informar e de ser informado, sem impedimentos nem discriminações" – artigo 40.º, n.º 1 da CRA.

Por outro lado, temos também que atentar que "aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios, fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação." – artigo 483.º, n.º 1 do Código Civil (CC).

Portanto, se todos têm direito a exprimir livremente as suas opiniões (e devemos entender que expressar opiniões erradas ou contrárias ao habitual, também faz parte deste direito), e, quem violar o direito de outrem deverá ser responsabilizado, é nosso entendimento de que as redes sociais não são a via competente, adequada e conveniente para julgar e decidir com justiça sobre tais causas.

 

4.4. As pessoas canceladas, ou arguidas, como preferimos chamar, terão direito ao Contraditório?

R: O cancelamento tende a ser uma prática brusca, imediata, e sem observância dos princípios jurídico-legais basilares que procuram garantir o devido processo e igualdade das partes no acesso à justiça e durante o processo. Na cultura do cancelamento não há a figura do "contraditório", e, se não há contraditório não se poderá alcançar a verdadeira justiça.

Na maioria das vezes o cancelado limita-se a pedir desculpas apenas como forma de voltar a ter existência virtual; lembremo-nos de que a vida hoje é feita em grande medida virtualmente, nas redes socias.

 

4.5. Quais direitos de outrem são violados com a cultura do cancelamento?

R: Ficam antes de tudo manchados os princípios da Igualdade e da Legalidade, e logo de seguida os direitos de acesso ao direito e a tutela jurisdicional efectiva, direito à integridade pessoal, direito à identidade, à privacidade e à intimidade, direito à família, casamento e filiação, direito a liberdade física e à segurança pessoal, direito de expressão e de informação, liberdade de consciência, de religião e de culto, e o direito à participação na vida pública – artigos 29.º, 31.º,32.º, 35.º, 36.º, 40.º, 41.º e 52.º todos da Constituição da República de Angola.

Por um lado, as respostas a essas questões, levaram-nos para um nível de entendimento que até então não nos pareceria possível, pois, a todo o momento parece que temos o controlo do mundo e da sua evolução.

Acontece que, com a dinâmica da vida nas redes sociais, já não bastam as políticas de privacidades existentes nas diferentes plataformas e/ou sites, pois surge agora, com a Cultura do Cancelamento, um ‘’tribunal do povo’’ capaz de acabar com a vida e/ou a carreira de uma pessoa que tem direitos, deveres, liberdades e garantias previstas constitucionalmente e mesmo ao nível das principais convenções internacionais, como já mencionado.

Por outro lado, entendemos, também, que muitas vezes é "graças" a cultura do cancelamento que se toma conhecimento da gravidade de determinado comportamento humano, mas ainda assim, não pensamos ser essa a melhor via de resolução.

Por exemplo, nos últimos dias, temos todos nos debatido com o facto de o líder religioso, Dalai Lama, uma pessoa aclamada por quase todas as pessoas  humanas, ter colocado o seu nome literalmente na "LAMA", ao pedir publicamente que uma criança lhe chupasse a língua. O cancelamento foi imediato e as várias opiniões sobre o tema igualmente, de tal forma que, em pouco menos de 72h tínhamos um pedido de desculpas público formal, feito pela equipa de Lama.

Em grande parte dos casos, é exactamente o que acontece.

Os tribunais da internet caem por cima e os cancelados sente-se obrigados a pedir desculpas sob pena de perderem para sempre qualquer prestígio que tinham outrora nas redes sociais.

Mas será que para o caso de Lama, um pedido de desculpas seria suficiente? Vamos passar a resolver os crimes com pedidos de desculpas? Abuso/violação de menores é CRIME, e os crimes não devem ser resolvidos com pedidos de desculpas apenas, porque são actos que geralmente causam graves danos a vida das outras pessoas.

 

5. CONCLUSÕES

Apesar de o ordenamento jurídico angolano, não abordar de forma específica nada que diga respeito a cultura do cancelamento, o mesmo nos alerta para diferentes formas de discriminação do nosso próximo em razão da sua opinião, raça, religião, partido político, entre outros.

Por essa razão, Angola não se encontra num estado de inercia perante esse fenómeno, pois a cultura do cancelamento, no nosso entendimento, nada mais é do que uma nova forma de discriminação e de justiça por mãos próprias, e quer a discriminação quer a justiça por mãos próprias são puníveis em Angola.

Por isso, entendemos, que essa prática apesar de parecer inicial e superficialmente muito eficaz porque produz efeitos notáveis rapidamente para os canceladores e também para a vida do ‘’cancelado’’, pode destruir em grande medida 1) o normal funcionamento dos tribunais e a busca da verdadeira justiça, uma vez que, com a alvoroço que se cria nas redes sociais sempre que se entende cancelar alguém, a pessoa cancelada (arguido), tendo em atenção que pode ter cometido um crime, mais facilmente conseguirá ver-se longe dos tribunais, indo para parte incerta sem deixar qualquer rasto, até porque os tribunais da internet, já o alertaram sobre as possíveis penas daquele delito, ou simplesmente poderá emitir um pedido de desculpas público. E, esse comportamento pode obviamente causar graves constrangimentos aos tribunais competentes para julgar tal matéria; 2) a continuidade de uma vida normal em sociedade daquele que for cancelado por uma questão que não necessariamente constitui um crime e que pode ser resolvida com uma simples conversa.

Existe ainda o facto de que, nem sempre as partes são legitimas e o tribunal (se é que podemos chamar as redes sociais de tribunais), não é competente. Desta forma, não estarão reunidos os pressupostos do princípio da legalidade e obviamente, não se poderá fazer JUSTIÇA.

Por fim, apelamos, a todos quantos sentirem-se lesados por qualquer conduta de outra pessoa para consigo ou para com um terceiro, que se dirija ao comando de polícia mais próximo de si para formular uma queixa e/ou denúncia ou ainda, ao tribunal da comarca mais próximo de si, para dar entrada a competente acção judicial.

Caso não tenha tempo e disponibilidade para tais diligências, poderá contratar um advogado para o efeito. Mas, não aconselhamos a prática do cancelamento.

E a si, caro leitor, o que lhe parece?

Agradecemos pela sua leitura.

Deusineth Carina Capanda

Deusineth Carina Capanda

Advogada, amante do direito privado, em particular família, sucessões, trabalho e comercial.

Áreas
Direito Constitucional Direito Civil Direito Informático

Palavras-chave
Cancelamento redes sociais direitos e deveres fundamentais justiça
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Comentários (1)

  • Paulo Machado Francisco
    Paulo Machado Francisco Cerca de 2 anos atrás

    Saudações de acordo o horário Matamba.ao. Venho primeiramente felicitar pelo veículo e em seguida a abordagem brilhante trazida pela Dra. Deusineth Capanda, é um tema interessante que tem se mostrado presente timidamente na nossa realidade, atendendo o facto das redes sociais serem utilizadas como "Tribunal Virtual com a inobservância expressa do princípio do contraditório", determinado Estado instituiu uma comissão para controle das redes sociais, pois pessoas têm ceifado as suas próprias vidas por cancelamento que posteriormente provado não haver razão de ser, os canceladores não são responsabilizados, será o momento de discutirmos a responsabilização destes? a regulação das redes sociais seria a solução? Não seria cercear a liberdade de expressão? Afinal o que é a liberdade de expressão perante o direito à saúde mental? Não sei, mas que a Tutela Jurisdicional seja exercida por quem de direito e, só assim se tornará completamente efectiva nos termos do art. 174 da CRA.

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