Evolução do Direito Societário Angolano no período 2012 - 2021

por Ireneu Matamba em 30 de Jun, 2022 Artigo
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Evolução do Direito Societário Angolano no período 2012 - 2021

"O direito societário angolano tem sofrido profundas alterações, ao longo dos últimos anos, que cumprem acompanhar, sob pena de se não estar a par das soluções vigentes."

 

1. Introdução

Na notícia que apresentamos no dia 8 de Junho de 2021 sobre a "reforma do direito comercial angolano", destacamos 2 reformas ocorridas em Abril e Maio de 2021. Todavia, muitas outras foram feitas antes das mesmas e no presente artigo são apresentadas, para que se possa ter uma ideia mais completa sobre que reformas e quando foram operadas. Uma versão mais detalhada, incluindo as questões metodológicas da investigação feita sobre esse tema, constará da primeira edição da ReJE - Direito Comercial, a revista da Jus Expert dedicada ao Direito Comercial.

Destaca-se que Angola atravessa uma fase de verdadeira diversificação da economia, como se pode notar do facto de no período 2017 -2022 (até a primeira quinzena de Maio) terem sido constituídas mais de 100.000 empresas, segundo dados do Guiché Único da Empresa (GUE). Recorde-se que desde a sua criação em 2002/2003 até 2017, o GUE havia constituído não mais de 50.000, o que demonstra bem o aumento nos últimos 5 anos.

Dentre vários factores que podem ter estado na base do referido aumento, podem-se destacar as reformas legais e regulamentares, iniciadas, na verdade, antes de 2017, nomeadamente em 2012, com a aprovação da Lei das Sociedades Unipessoais e solidificadas em 2014 (Lei da redução dos emolumentos) e 2015 (Lei da Simplificação do Processo de Constituição de Sociedades Comerciais), todas elas no âmbito da melhoria do ambiente de negócios, que, em súmula, procederam a simplificação do processo de constituição, bem como a redução do custo de constituição de sociedades comerciais.

O direito societário angolano sofreu várias alterações depois da aprovação da LSC, especialmente a partir de 2012. As principais surgiram em (i) 2012, com a aprovação da Lei das Sociedades Unipessoais, (ii) 2014, com a lei da redução dos emolumentos pela constituição de sociedades comerciais, (iii) 2015, com a lei da Simplificação dos processos de constituição de sociedades comerciais, com a lei de bases das instituições financeiras, entretanto revogada em 2021, pela lei que aprovou o regime geral das instituições financeiras e com a lei que aprovou o código de valores mobiliários, (iv) 2018, com a lei do investimento privado, ainda em vigor, não obstante as alterações e republicação ocorridas em 2021, (v) 2021, com a lei de alteração e republicação da lei do investimento privado e com a lei que alterou o artigo 31.º e revogou o artigo 32.º, ambos do Código Comercial.

Em seguida são apresentadas e desenvolvidas o essencial das alterações ocorridas, deixando-se de fora a relativa ao regime jurídico das instituições financeiras, cuja lei pode ser encontrada aqui.

 

3. Criação ex novo de sociedades unipessoais (2012)

Lei n.º 19/12, de 11 de Junho – das sociedades unipessoais (LSU) transformou o direito societário angolano, sendo o principal aspecto o de permitir a criação, ex novo, de sociedades comerciais com uma única pessoa.

Com efeito, até 2012 as sociedades apenas poderiam ser unipessoais supervenientemente, isto é, apenas poderiam estar reduzidas a 1 sócio por vicissitudes ocorridas depois da sua constituição como sociedade pluripessoal.

A regra geral em matéria de número de sócios era definida pelo disposto no artigo 8.º, n.º 2 da LSC (versão original de 2004): “Salvo disposição legal em contrário, o número mínimo de partes de um contrato de sociedade é de dois.”

Essa disposição, aliás, estava em plena sintonia com o artigo 980.º do Código Civil (CC), que definia a sociedade como sendo um contrato entre 2 ou mais pessoas:

“Artigo 980.º (Noção): Contrato de sociedade é aquele em que duas ou mais pessoas se obrigam a contribuir com bens ou serviços para o exercício em comum de certa actividade económica, que não seja de mera fruição, a fim de repartirem os lucros resultantes dessa actividade.”

Essa reforma surgiu em consequência da realidade existente na altura (law in action), que diferia do direito então vigente (law in the books). Efectivamente, as pessoas, evitando o regime (legal) dos Comerciantes em Nome Individual (era a única forma de empreender formalmente sem ter um sócio), sobretudo por não apresentar limitação da responsabilidade do “investidor” perante terceiros, constituíam sociedades pluripessoais com sócios “fantasmas” (que poderiam ser amigos, parentes ou trabalhadores domésticos), sócios esses que logo a seguir à constituição outorgavam uma procuração conferida no interesse do mandatário, também impropriamente designada de “procuração irrevogável” (o “verdadeiro” sócio), dando-lhe poderes para decidir como lhe aprouver, sobre os destinos da sociedade, sem a necessidade da presença do “outro” sócio.

As sociedades assim constituídas eram, na prática, unipessoais, embora sem essa formalização como tal. A LSU veio reconhecer e regular essa prática, a luz do que já se fazia noutros ordenamentos jurídicos, como o sul africano, português.

Não obstante o avanço assinalado, o legislador apresenta sinais de que era, ainda assim, averso à sociedade unipessoal.

Efectivamente, não se percebe, por exemplo, o regime mais gravoso de responsabilidade do sócio único pelas dívidas, assim como as limitações constantes do artigo 20.º.

Com efeito, o artigo 4.º, n.º 1 impõe uma responsabilidade subsidiária do sócio único perante terceiros, o que nas sociedades por quotas pluripessoais apenas pode ocorrer se os sócios assim acordarem estatutariamente, tal como decorre do n.º 1 do artigo 218.º da LSC.

Sobre essa norma (artigo 4.º, n.º 1 LSC) é preciso referir-se que a mesma é aplicável também para as sociedades unipessoais anónimas, pelo que a solução que consagra vai contra o regime consagrado para as sociedades anónimas pluripessoais, em que os accionistas não respondem pelas dívidas sociais, perante terceiros (artigo 301.º LSC).

Por outro lado, também não se compreende o facto de se proibir que uma sociedade unipessoal participe do capital de outras sociedades (vide artigo 20.º, n.º 4, da LSU), como se a personalidade jurídica da sociedade unipessoal fosse inferior à das sociedades pluripessoais. E o fundamento, segundo o qual o risco de confusão do património da sociedade com o do sócio único é elevado, por o mesmo estar sozinho na sociedade e puder “fazer e desfazer” como lhe aprouver não colhe, pois tal risco também existe numa sociedade pluripessoal, desde que todos os sócios acordem nesse sentido. Pense-se numa sociedade por quotas com 2 sócios e ambos a exercerem a gerência.

 

4. Redução dos emolumentos para a constituição de sociedades (2014)

Em 2014, a Lei n.º 16/14, de 29 de Setembro - da redução dos emolumentos, procedeu a uma redução drástica dos valores/emolumentos para a constituição de sociedades comerciais, tendo fixado em 11.000,00 Kz. para as sociedades por quotas e 41.000,00 Kz. para as sociedades anónimas.

A única excepção ao referido acontece quando a constituição seja feita por escritura pública, tanto por iniciativa dos interessados, como por imposição legal, pois é necessário pagar-se o valor da referida escritura, fixado em 3.250,00 Kz para as sociedades por quotas e 13.250,00 Kz, para as sociedades anónimas (consultar o n.º 6, alíneas l. e n. do anexo VIII do Decreto Presidencial n.º 301/19, de 16 de Outubro).

Deve-se ter em consideração que, havendo lugar a constituição por escritura pública, também é devido o valor da certidão da escritura, a ser entregue aos interessados, fixado em 1.738,00 Kz, valor esse que deve ser acrescido de 440,00 Kz por cada lauda a mais (consultar o n.º 4, alíneas a. e b. do anexo VIII do Decreto Presidencial n.º 301/19, de 16 de Outubro).

Em consequência, verificou-se um aumento do número de sociedades constituídas.

Todavia, deve-se destacar pela negativa o facto de a referida lei ter apenas alterado o valor para a constituição de sociedades comerciais, deixando de fora tanto os valores das alterações (que são muito altos), como os comerciantes em nome individual e provocando, mesmo, quanto a esses últimos, um absurdo em termos de custo.

Com efeito, os comerciantes em nome individual pagavam um total de xxx, o que não se compreende, considerando que a referida figura está especialmente prevista para as pequenas actividades, o que se percebe pela menor exigência em termos de escrituração mercantil, e mesmo tributários.

Hoje o valor pago pelos comerciantes está reduzido a 21.380 Kz, sobretudo devido à não necessidade de publicação da sua constituição em diário da república, em função da entrada em vigor da publicação online, que não sendo gratuita (o n.º 2 do artigo 14 da Lei 11/15, de 17 de Junho diz que é feita “a expensas” da sociedade, sendo apenas o acesso ao sítio da internet gratuito, nos termos do n.º 3 do mesmo artigo 14.º), não tem sido ainda cobrada, muito provavelmente devido a ausência de uma taxa para o efeito, legalmente criada.

 

5. Simplificação do processo de constituição de sociedades comerciais (2015)

Em 2015 o direito societário foi profundamente reformulado, em decorrência da entrada em vigor da Lei n.º 11/15, de 17 de Junho.

A referida lei é de capital importância no âmbito dos processos de constituição de sociedades comerciais no ordenamento angolano. Ela assenta na necessidade sentida e há muito reclamada pelos comerciantes “de reduzir os entraves à actividade das sociedades comerciais, nomeadamente simplificando os procedimentos administrativos que lhes sejam aplicáveis”, como resulta do primeiro parágrafo do preámbulo da lei.

A sua aprovação implicou alteração de muitas normas fundamentais consagradas nos mais variados diplomas que tratam das matérias relativas às sociedades comerciais. Tal é o caso do Código Comercial (CCM), da Lei das Sociedades Comerciais (LSC), em primeira instância, mas também da Lei da simplificação e modernização dos registos predial e comercial e serviço notarial (LSMRPCSN) e do Código do Notariado (CN).

A tónica da reforma operada pela lei em análise prende-se com dois aspectos fundamentais: a simplificação do processo de constituição pela supressão de actos e práticas que não trazem valor acrescentado às empresas e aos empresários, por um lado e, por outro, a necessidade de se garantir igual ou melhor segurança que àquela que resultava da existência dos actos e práticas que foram eliminados, suprimidos ou simplesmente simplificados.

A principal novidade da lei consistiu em tornar facultativas as escrituras públicas relativas aos actos da vida das sociedades comerciais (consultar os artigos 1.º, al. a. e 3.º, n.º 1), solução essa que não é absoluta.

Com efeito, em primeiro lugar, as normas citadas no parágrafo anterior consagram como excepção as “situações em que seja exigida forma mais solene para a transmissão dos bens com que os sócios realizem as entradas em espécie e na transformação de sociedades entre tipos distintos”.

Em segundo lugar, há que considerar que não obstante o espírito e finalidade da lei (simplificação, eliminação das escrituras públicas…), o legislador consagrou ao menos uma norma que condiciona a sua pretensão, como abaixo se explica.

O (novo) artigo 90.º, n.º 2, da LSC, alterado pelo artigo 19.º da Lei em análise, consagra que “a alteração do contrato de sociedade deliberada nos termos do número anterior deve estar sujeita está sujeita à mesma forma do acto de constituição da sociedade”.

O referido artigo mas não fez que consagrar o princípio (notarial) do paralelismo de forma entre a constituição e as alterações às sociedades comerciais, segundo o qual a forma do acto de alteração deve ser igual ou mais solene que a da constituição. Diga-se, que esse princípio está consagrado na alínea b) do artigo 89.º do Código do Notariado.

Destarte, se uma sociedade for constituída por escritura, tanto por imposição legal, como por vontade dos interessados, as alterações à mesma deverão ser feitas por escritura pública, o que está conforme a mencionada alínea b) do artigo 89.º do Código do Notariado, mas distante da finalidade da reforma em análise, nos termos já mencionados.

Assim, há que proceder-se a uma redução teleológica desse n.º 2 do artigo 90.º da LSC (com a nova redacção), para permitir que a reforma alcance os seus objectivos.

É de realçar, também, a introdução de um procedimento de constituição imediata de sociedades comerciais e de registos online. Com efeito, a legislação em análise e respectiva regulamentação permitiram, pela primeira vez em Angola, a constituição se sociedades comerciais através da internet, o que, além de permitir que investidores estrangeiros constituam as suas sociedades sem terem que se deslocar ao país, permite, em particular, que os cidadãos que vivam em províncias sem representação física do Guiché Único da Empresa (GUE), possam beneficiar desse serviço inovador de constituição de empresas.

A constituição de empresas online é feita no sítio da internet www.gue.gov.ao.

É de realçar, também, na senda da anterior, a alteração que consistiu na publicação online dos actos da vida das sociedades comerciais, em substituição da publicação em diário da República.

Com efeito, até a implementação desse serviço em www.gue.gov.ao, os interessados, depois do processo de constituição (obtenção do registo comercial), tinham de esperar em regra mais de 45 dias, para verem as suas empresas publicadas em diário da República, o que se afigurava como um constrangimento ao efectivo arranque da actividade comercial.

Destaca-se que durante a vigência do Estado de Emergência em 2020, em decorrência da pandemia da Covid-19, com quase todos os serviços públicos fechados, o GUE continuou a operar pela internet, o que permitiu a constituição de algumas sociedades comerciais no período em questão.

Não menos importantes foram as seguintes alterações: a eliminação do capital social mínimo para as sociedades por quotas, passando o capital social a ser livremente fixado pelos sócios, a possibilidade de diferimento da realização das entradas nos cofres da sociedade até ao termo do primeiro exercício económico, a flexibilização do modo de organização da escrituração mercantil, através da eliminação da obrigatoriedade de existência dos livros de inventário, balanço, diário, razão e copiador, observando o disposto no Plano Geral de Contabilidade e a extinção do Imposto para Início de Actividade e a isenção da incidência de Imposto de selo sobre os actos de constituição de sociedades comerciais;

 

6. Nova Lei do Investimento Privado (2018)

Em 2018 foi aprovado um novo regime jurídico do investimento privado, pela Lei n.º 10/18, de 26 de Junho – Lei do Investimento Privado (LIP). Diga-se, desde já, a mesma lei continua em vigor, não obstante as alterações sofridas em 2021, Lei n.º 10/21, de 22 de Abril.

 Outubro – Regulamento dos Procedimentos Legais do Investimento Privado realizado ao abrigo da Lei do Investimento Privado, alterados e republicados pela Lei n.º 10/21, de 22 de Abril.

As grande mudança introduzida pelo diploma em análise ao processo de constituição de sociedades comerciais prende-se com a dispensa da necessidade de aprovação prévia do investimento pela entidade competente (Agência de Investimento Privado e Promoção das Exportações), o que seria feito pela passagem do Certificado de Registo de Investimento Privado (CRIP), no regime de declaração prévia, nos termos do artigo 35.º, n.º 2 LIP.

Em consequência, o estrangeiro, estando em Angola, apenas precisa de confirmar que terá entrado legalmente (facto que deve ser comprovado mediante apresentação de qualquer visto de entrada válido). 

 

7. Dispensa de legalização do livro de actas das sociedades comerciais, pelo Estado (2021)

A citada Lei 11/15, de 17 de Junho, permitiu que o livro de acta fosse legalizado junto das conservatórias do registo comercial, o que representava, já, um avanço, na medida que até então a legalização era feito pelo Tribunal.

A redacção da Lei 11/15, de 17 de Junho era, todavia, confusa. Verdadeiramente, atribuía tanto aos órgãos das sociedades, como às conservatórias do registo comercial, o poder le legalizar.

De uma parte, mandava os órgãos internos das sociedades praticarem os actos que consubstanciam a legalização (lavrar os termos de abertura e encerramento, bem como numerar e rubricar as páginas – artigos 31.º e 32.º do Código Comercial, com as redacções resultantes dos artigos 11.º e 18.º da supracitada Lei n.º 11/15, de 17 de Junho).

Com a Lei n.º 7/21, de 14 de Abril, procedeu-se a 2 operações, que terminaram com a confusão que se tinha instalado: alteração da parte final do artigo 31.º, eliminando-se a referência segundo a qual os órgãos da sociedade requerem a legalização do livro, e revogação do artigo 32.º do Código Comercial (que mandava legalizar o livro de actas junto da conservatória do registo comercial).

Deste modo, o livro de actas das sociedades comerciais deixam de ser legalizados junto da conservatória do registo comercial, e passam a ser junto da própria sociedade, por intermédio dos seus órgãos (Gerência ou administração). Para o efeito, lavram o termo de abertura (e de encerramento, na devida altura), numeram e rubricam as folhas do livro.

Destaca-se, também, que o livro pode ser feito electronicamente, solução resultante das alterações introduzidas pela Lei n.º 11/15, de 17 de Junho (artigo 11.º) sendo encadernado no final, como decorre do artigo 31.º vigente do Código Comercial.

 

8. Considerações finais

Várias foram as reformas, importantes pelas razões já avançadas, mas que pecam porque dispersas ou avulsas e não se afiguram devidamente sistematizadas.

E a si, caro leitor, o que tem a dizer sobre as alterações do direito societário angolano? Por favor, deixe a sua opinião nos comentários abaixo.

Obrigado pela leitura.

Ireneu Matamba

Ireneu Matamba

Mestre em direito pela Universidade do Minho; Aluno do Doutoramento em Direito Civil na UBA; Pós-graduado em direito das sociedades comerciais; Pós-graduado em direito do trabalho e segurança social; Co-fundador do portal Matamba - Direito & Tecnologia; Ex Director Geral do Guiché Único da Empresa; Ex Director Nacional de Identificação, Registos e Notariado; Docente universitário há 16 anos; Consultor jurídico (direito comercial, direito das sociedades comerciais, direito da família e sucessões e direito dos registos e notariado).

Áreas
Direito Societário

Palavras-chave
direito societário evolução recente
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